Levantamento da AtlasIntel, em parceria com a República.org, aponta que a população quer um Estado mais eficiente, moderno e transparente, não necessariamente menor.

Fotógrafo: câmara dos deputados – Diego Grandi e Shutterstock
Quase metade dos brasileiros está insatisfeita com a qualidade do serviço público. Ao mesmo tempo, a população não enxerga o servidor como vilão nem defende um “Estado mínimo”: o que aparece com força é o desejo de mais eficiência, transparência e fim de privilégios concentrados no topo da máquina pública, especialmente no Judiciário e no Ministério Público. É o que revela a pesquisa nacional realizada pela AtlasIntel a pedido da República.org, entre 23 e 28 de outubro de 2025, com 2.287 entrevistados de todas as regiões do país. A margem de erro é de dois pontos percentuais e nível de confiança de 95%.
O levantamento confirma uma percepção já conhecida, mas agora quantificada: uma parcela significativa da população se declara insatisfeita (29,4%) ou muito insatisfeita (19%) com os serviços públicos. Para boa parte dos entrevistados, porém, o problema não é simplesmente “falta de dinheiro”, e sim como os recursos são administrados. Para 54,7% é possível oferecer serviços públicos de melhor qualidade sem aumentar os gastos do governo. Já 74,7% dos entrevistados defendem que é preciso melhorar a gestão dos recursos existentes.
“Foi interessante ver que uma boa parte entende que o problema é mais a gestão dos recursos do que o volume de dinheiro em si”, observa Ana Pessanha, especialista em Conhecimento da República. Segundo ela, as respostas a perguntas sobre eficiência indicam que “as pessoas entendem que algo precisa ser feito”.
Brasileiros apoiam gestão de desempenho no serviço público, mas reconhecem desvalorização de categorias
A pesquisa também mostra que muitos brasileiros veem as regras atuais do serviço público como geradoras de incentivos errados. Há uma fração relevante que enxerga essas regras como estímulo para que servidores “se esforcem pouco ou nada”, o que reforça a ideia de que mecanismos de gestão e desempenho precisam ser revistos. Segundo o levantamento, muitos brasileiros consideram que os servidores se saem pior que seus pares da iniciativa privada.
Para 30% dos entrevistados, os servidores se esforçam muito menos que os profissionais da iniciativa privada, enquanto, para 27,8%, os funcionários públicos se esforçam um pouco menos que os trabalhadores privados. Essas avaliações se relacionam diretamente à visão sobre o arcabouço atual do funcionalismo: para 35,7%, as regras vigentes incentivam o servidor a se esforçar o mínimo possível, enquanto 22% avaliam que não estimulam esforço algum. Essa percepção não impede, porém, o apoio à estabilidade: 43,5% defendem que ela seja mantida para todas as categorias.
Apesar das críticas, a população demonstra sensibilidade em relação às desigualdades internas ao serviço público e reconhece a dificuldade enfrentada por categorias da ponta. Profissionais da educação básica aparecem como os mais desvalorizados no quesito remuneração e benefícios recebidos: 39% os consideram muito desvalorizados e 26% os classificam como desvalorizados. Na saúde, 22% apontam desvalorização intensa em relação a salários e benefícios e 23% desvalorização moderada; na segurança pública, esses índices chegam a 23% e 19%.
Servidor público não é vilão, mas privilégios incomodam
O estudo desmonta a narrativa de que a sociedade quer “acabar com o serviço público”. Quando perguntados sobre os objetivos de uma reforma administrativa, os entrevistados apontam prioritariamente:
- Combate a privilégios – 40% citam esse ponto como principal objetivo;
- Transparência e combate à corrupção – 37,4%;
- Aumento da eficiência e da qualidade dos serviços – 36,4%;
- Apenas cerca de um quarto (25,5%) indica “reduzir o tamanho do Estado” como prioridade.
“Vemos um olhar de que a população quer serviços mais eficientes, mais transparência, menos privilégios no setor público, mas não necessariamente defende um Estado menor”, resume Fernanda Melo, especialista em Advocacy da República.
Pela pesquisa, quando o tema são benefícios considerados privilégios, o recado é bem contundente:
- Supersalários acima do teto constitucional (hoje de R$ 46.366,19 brutos) são considerados “totalmente injustificados” por 73,1% dos entrevistados, segundo o questionário.
- Férias de 60 dias para integrantes do Judiciário e do Ministério Público são vistas como “totalmente injustas” por 69,1% da população.
- Aposentadoria compulsória como forma de punição para membros do Judiciário e do MP é classificada como “totalmente injusta” por 63,1%, com mais 4,6% avaliando como “injusta” – ou seja, aproximadamente dois terços rejeitam o mecanismo.
“É tão óbvio que isso é injusto que eu já esperava que a maior parte discordasse”, diz Ana Pessanha. “Mas ver resultados na casa dos 80% em alguns itens foi acima do que eu imaginava. Em uma sociedade tão desigual, é natural que a população, em grande parte pobre e sem esses benefícios, olhe para essas carreiras e ache injusto.”
Opinião semelhante é compartilhada por Fernanda Melo. “A gente vê um apoio muito grande a pautas como combate a supersalários, redução de salários acima do teto e fim de férias de 60 dias. Esses benefícios são percebidos como privilégios, distantes da realidade da maior parte das pessoas — e também do serviço público”, ressalta a especialista.
Reforma pouco conhecida, mas medidas específicas têm apoio
Se o diagnóstico sobre privilégios e incentivos é claro, a reforma administrativa em discussão no Congresso ainda é um tema distante para grande parte da sociedade. Segundo a pesquisa, 37,7% dos entrevistados dizem “conhecer apenas alguns aspectos” da proposta, enquanto 28,3% afirmam que “já ouviram falar, mas não sabem exatamente do que se trata”. O levantamento aponta ainda que 15,6% declaram não saber ou não ter opinião formada em relação à reforma.
Entre quem declara algum conhecimento, cerca de 40% se dizem favoráveis (total ou em grande parte) à reforma administrativa, mas 26,4% não sabem dizer se são a favor ou contra, evidenciando o grau de desconhecimento.
Para Fernanda, o dado central é o “gap” entre o conhecimento sobre a reforma como um todo e a reação às medidas concretas. “As pessoas conhecem pouco o que está sendo proposto e trabalham numa percepção mais geral da reforma. Quando você olha para medidas específicas, o nível de apoio é bem mais alto do que o apoio à reforma como um todo”, argumenta a especialista em Advocacy.
Ana Pessanha concorda com essa leitura. “A reforma é pouco conhecida, o que era algo que a gente já esperava. Mas quando se destrincha as propostas, sobretudo as que se referem ao combate a privilégios, uma boa parte, muitas vezes acima de 70%, concorda totalmente”, avalia.
Avaliação de desempenho: consenso raro
Um dos achados mais importantes do levantamento é a ampla concordância com mecanismos de avaliação de desempenho. Nada menos que 70,8% dos entrevistados concordam totalmente que servidores públicos sejam avaliados periodicamente com base em suas entregas. Já outros 11,9% concordam parcialmente; ou seja, somados são mais de 80% de apoio à medida. A pesquisa aponta também que
57,1% defendem que os servidores com melhor desempenho sejam priorizados em promoções e aumentos salariais.
“Pessoas com emprego formal estão sempre, direta ou indiretamente, sendo avaliadas se trabalham e se trabalham bem, pois o risco de demissão é inerente, Portanto, esse é um tema intuitivo para a população”, observa Ana. “Ter mais de 80% da população apoiando que servidores sejam avaliados periodicamente com base em suas entregas é um sinal de que essa agenda tem respaldo social”, pondera Fernanda Melo.
Servidor, regras e debate público
A pesquisa também capta a percepção de que as regras atuais não incentivam o melhor desempenho. Uma parcela expressiva dos entrevistados considera que o arcabouço de incentivos leva servidores a se esforçarem “nada ou muito pouco”.
Para Ana Pessanha, isso reforça a necessidade de qualificar o debate: “Não tem problema nenhum servidores e especialistas discordarem das propostas e apresentarem contrapontos. Mas o debate deve ser propositivo e pautado nas propostas efetivamente apresentadas. Se tudo vira ‘não à reforma’, o Estado não melhora, a população continua insatisfeita e a confiança no setor público cai”, diz.
Outra contribuição do levantamento é ajudar a reposicionar a discussão sobre o papel do Estado. Os dados sugerem que a população quer um Estado mais eficiente, moderno e transparente, mas não compra automaticamente a agenda de “enxugamento” a qualquer custo. “Só 25% veem reduzir o tamanho do Estado como prioridade da reforma, enquanto a maior parte fala em combater privilégios, aumentar transparência e melhorar eficiência e qualidade dos serviços”, observa Fernanda.
Uma agenda que não desaparece
A pesquisa Atlas/República mostra que, apesar do baixo conhecimento sobre o texto da reforma administrativa, há um terreno fértil na opinião pública para uma agenda de modernização do Estado baseada em três pilares:
- Combate a privilégios concentrados em poucas carreiras;
- Mais transparência e controle social sobre gastos e benefícios;
- Gestão de desempenho que ligue esforço, entregas e progressão na carreira.
“Grandes reformas estruturais sempre enfrentam resistências muito mobilizadas de grupos que se sentem ameaçados, enquanto a maioria beneficiada tende a ser mais silenciosa”, observa Fernanda Melo. “Ter evidências de que a população apoia o combate a privilégios e a melhoria da gestão de desempenho é fundamental para reequilibrar essa balança”, conclui a especialista.