Normas sobre carreiras – Proposta de Emenda à Constituição (PEC) e Marco Legal da Administração Pública (PL)
A Reforma Administrativa segue em discussão no Congresso Nacional e propõe mudanças profundas na forma como o Estado organiza e remunera suas carreiras. Nesta nota técnica, a República.org analisa as medidas em debate e destaca avanços, pontos de atenção e ajustes necessários para que a reestruturação das carreiras ajude a reduzir desigualdades, valorizar os servidores e fortalecer a capacidade de entrega do serviço público.
Alinhamento geral
Alinhado parcialmente: há concordância geral com a proposta, ainda que sejam necessários alguns ajustes em sua forma e conteúdo.
Síntese das recomendações
- Revisar a redação da proposta de PEC que busca reestruturar o quadro de pessoal, retirando a diretriz de que a reestruturação não poderá implicar aumento de remuneração.
- Avaliar alternativas à proposta de limitar a remuneração ou subsídio inicial de cada carreira a, no máximo, 50% do valor da remuneração ou subsídio do último nível da mesma carreira, excetuando-se os casos em que o subsídio final seja de até quatro salários mínimos.
- Rever a composição e as atribuições do Conselho de Política de Administração e Remuneração de Pessoal (COPAR), de modo a alinhá-las às boas práticas internacionais de comissões salariais (tal como destacado na nota técnica sobre supersalários).
Análise por princípios
Princípio 1: Contribuição para o fortalecimento da capacidade estatal e da geração de entregas para os cidadãos.
Pontos de concordância:
No âmbito das propostas voltadas ao fortalecimento da capacidade estatal, destacam-se quatro iniciativas que avançam na correção de atuais distorções do sistema de carreiras no Brasil e no fortalecimento da capacidade estatal. A primeira é a constitucionalização da vedação à progressão ou promoção exclusivamente por tempo de serviço, prática incompatível com as boas práticas de gestão do desempenho.
O projeto de lei que institui o Marco Legal da Administração Pública, por sua vez, estabelece normas gerais para a gestão das carreiras, com dois pontos positivos que merecem destaque. Primeiramente, o art. 8º define diretrizes gerais aplicáveis a todos os entes e poderes, incluindo: geração de valor público por meio da excelência na gestão de pessoas; simplificação e racionalização da estrutura de grupos, carreiras e cargos; organização das carreiras em grupos de atribuições semelhantes; fomento a carreiras transversais; gestão dinâmica da força de trabalho, com mobilidade e aproveitamento estratégico dos servidores; priorização da alocação em atividades de maior complexidade e impacto institucional; desenvolvimento contínuo, valorização profissional e alinhamento entre complexidade das atribuições e remuneração; reconhecimento do mérito individual e do desempenho coletivo com base em avaliação periódica; transparência ativa e disponibilização em dados abertos das estruturas de carreira, da alocação de servidores e das remunerações; e integração entre planejamento de pessoal, orçamento e políticas públicas.
O PL também estabelece diretrizes para definição de atribuições e requisitos de ingresso: cargos com atribuições preferencialmente amplas e multifuncionais, permitindo a movimentação da força de trabalho conforme necessidades da administração ao longo do tempo; estruturação de cargos segundo as atividades a serem desempenhadas, não vinculadas exclusivamente a um órgão; e classificação em especialidades quando for necessária formação específica ou domínio de habilidades técnicas, com critérios objetivos e considerando o interesse da administração pública.
Como princípios gerais, as propostas estão alinhadas às boas práticas de gestão de carreiras. Ao prever a estruturação dos cargos com base nas atividades a serem desempenhadas (e não em órgãos específicos), a proposta contribui para corrigir a distorção de carreiras semelhantes com remunerações distintas, conforme apontado no Anuário de Gestão de Pessoas no Setor Público 2024. Por exemplo, um analista administrativo do INCRA inicia a carreira com remuneração inferior a R$ 6 mil e pode chegar a pouco mais de R$ 12 mil no final da carreira. No IBAMA, ICMBio e MMA, o mesmo cargo começa com quase R$ 10 mil e alcança cerca de R$ 17 mil. Já nas agências reguladoras, um analista administrativo inicia com cerca de R$ 15 mil e pode chegar a pouco mais de R$ 21 mil.
Da mesma forma, ao estabelecer como diretriz o alinhamento entre a complexidade das atribuições e a remuneração, busca-se enfrentar outra distorção destacada no Anuário: a falta de correspondência entre salário e complexidade da função. Dados de 2023 para o governo federal mostram que titulares de coordenação-geral (CCE-13 até CCE-14) ganham no máximo 12,7 mil reais, o que seria equivalente a apenas 64% do salário máximo de um analisa de ciência e tecnologia, 42% do salário máximo de um especialista em políticas públicas e gestão governamental e 38% de um auditor fiscal do trabalho. A nível estadual, dados de 2024 para o estado de Sergipe mostram que um secretário ganha 66% do salário máximo de um gestor governamental e 51% do salário máximo de um procurador. No Mato Grosso do Sul, o subsecretário ganha praticamente o mesmo salário que o secretário e o superintendente ganha apenas 71% do salário máximo de um gestor governamental e 43% do salário máximo de um analista de gestão governamental. Isso considerando apenas a comparação entre cargos comissionados de alta direção e carreiras específicas, sem incluir as diferenças entre as próprias carreiras, cuja análise demandaria um estudo comparativo de complexidade das atribuições para identificar eventuais disparidades.
As demais medidas — como a vedação à promoção exclusivamente por tempo de serviço, a valorização profissional por meio de avaliações periódicas de desempenho e a priorização da transversalidade e da movimentação estratégica — têm potencial para fortalecer a capacidade estatal e melhorar a entrega de resultados. Essas ações criam incentivos positivos ao desempenho e favorecem uma alocação mais estratégica de servidores, garantindo que as pessoas certas estejam nos lugares certos, de acordo com o seu perfil de competências (OCDE, 2022).
Por fim, a PEC estabelece que quando necessária a admissão de profissionais com maior especialização e experiência profissional, o concurso público poderá ser destinado à investidura em nível de carreira diverso do inicial, desde que a modalidade de provimento de cargos não ultrapasse 5% (cinco por cento) da força de trabalho dimensionada do órgão ou entidade pública. O PL, por sua vez, detalha a medida, afirmando que ato do poder Executivo de cada ente federativo poderá prever hipóteses de ingresso, mediante concurso público, em nível superior ao inicial do cargo, condicionado a critérios objetivos de titulação acadêmica e experiência profissional compatíveis com as atribuições do cargo, limitados a 5% (cinco por cento) do total de cargos providos.
Tal medida pode contribuir para o fortalecimento da capacidade estatal ao incentivar a atração de profissionais mais qualificados, que não precisariam “retroceder” na carreira para ingressar no serviço público. É preciso reconhecer, contudo, que sua implementação é complexa: definir e aplicar critérios objetivos de titulação acadêmica e experiência profissional compatíveis com as atribuições do cargo representa um desafio significativo, especialmente para municípios de pequeno porte. Ainda assim, por ter caráter facultativo e alcance limitado — sendo o percentual de limitação, embora não amparado por critérios ou evidências claramente definidos, uma possível salvaguarda enquanto se testa e aprimora sua aplicação —, a medida pode constituir um passo inicial relevante para a introdução de práticas inovadoras no setor público e, se bem conduzida, contribuir efetivamente para o fortalecimento da capacidade estatal. Ressalta-se, por fim, que essa iniciativa não afeta a motivação relacionada ao desempenho das atribuições da carreira, uma vez que estas, por lei, permanecem inalteradas ao longo da tabela salarial.
Pontos de atenção:
Como principais pontos de atenção em relação a este princípio, destacam-se a redação das propostas relacionadas à política de movimentação e ao desenvolvimento do servidor na carreira.
No primeiro caso, o texto estabelece o prazo de quatro anos para que cada ente federativo implemente, como medida de gestão de pessoal, o dimensionamento da força de trabalho e a movimentação de pessoal entre órgãos e entidades públicas do respectivo poder ou órgão autônomo, com alteração da lotação e do exercício de agentes públicos de acordo com as necessidades da administração pública identificadas no dimensionamento da força de trabalho. Como diretriz, a proposta está alinhada às boas práticas de gestão recomendadas pela OCDE (2022). No entanto, a redação do artigo 3º da PEC apresenta pouca clareza, especialmente quanto ao prazo de quatro anos para a realização da movimentação de pessoal: não se explicita de forma precisa o que a medida propõe nem como seria verificado seu cumprimento.
Na proposta de projeto de lei, o artigo 11º estabelece que será facilitada a movimentação de servidores entre diferentes órgãos e entidades do mesmo ente federativo, especialmente quando as carreiras de origem e de destino pertencerem ao mesmo grupo de carreiras. De modo semelhante, essa formulação também carece de precisão — não se define, por exemplo, o que significa, na prática, que a movimentação “será facilitada”. Nesse sentido, recomenda-se o aprimoramento da redação para conferir maior clareza e operacionalidade à proposta.
Por fim, destaca-se como ponto de atenção a possível sobreposição de normativos relacionados ao desenvolvimento do servidor na carreira. O artigo 12 do PL prevê que “o desenvolvimento do servidor na carreira será orientado por critérios objetivos que combinem mérito e tempo de serviço, vedada a progressão baseada exclusivamente no interstício temporal”. Como critérios de mérito, seriam considerados os resultados em avaliações de desempenho individual e institucional, a participação em programas de capacitação e desenvolvimento profissional, a titulação acadêmica relacionada às atribuições do cargo e o engajamento e comprometimento com o trabalho desempenhado. Essa previsão, contudo, parece se sobrepor ao disposto no projeto de lei complementar que institui a Lei de Responsabilidade por Resultados, que estabelece que cada poder e órgão autônomo instituirá um sistema de desenvolvimento na carreira baseado na atribuição de pontos ao servidor, considerando, além do resultado da avaliação de desempenho, fatores tais como: frequência e aproveitamento em atividades de capacitação; titulação; exercício de funções de confiança, cargos em comissão ou coordenação de equipe/unidade; produção técnica ou acadêmica relacionada à área de atuação; exercício em unidades de lotação prioritárias; e participação regular como instrutor em cursos técnicos previstos no plano anual de capacitação do órgão. A avaliação de desempenho individual, por sua vez, tem como critérios na Lei de Responsabilidade por Resultados: cumprimento das metas pactuadas, presteza e iniciativa, qualidade e tempestividade do trabalho, produtividade no trabalho, competências transversais, competências de liderança (ver nota técnica sobre gestão do desempenho para uma análise crítica sobre esses critérios). Recomenda-se, portanto, ajustes de redação e harmonização normativa para assegurar coerência entre as propostas.
Princípio 2: Simplificação, racionalização e otimização da gestão do Estado.
Pontos de concordância:
Dentre as propostas com caráter positivo, tanto a PEC como o PL trazem a previsão de, no mínimo, vinte níveis para o alcance do nível final da carreira, com interstício mínimo de um ano entre cada progressão ou promoção. Tal medida contribui para trazer maior racionalização e reduzir a atual desigualdade do tempo de amplitude salarial entre carreiras: há carreiras que hoje atingem o topo da tabela salarial na metade do tempo da vida ativa e, com isso, perdem o incentivo da progressão salarial.
O PL também estabelece que propostas de criação, racionalização ou reestruturação de carreiras devem observar: a estrutura organizacional do respectivo poder ou órgão autônomo e seu planejamento estratégico; o dimensionamento da força de trabalho e o mapeamento de competências, identificando sobreposições e lacunas; a análise de impacto orçamentário-financeiro, nos termos da legislação aplicável, e a compatibilidade com os limites de despesa de pessoal; a facilitação da mobilidade de servidores entre órgãos e entidades públicas; e a observância dos princípios da eficiência administrativa, da economicidade e da sustentabilidade fiscal.
Em outro artigo, o texto prevê que o poder Executivo de cada ente federativo organizará suas carreiras em grupos, utilizando metodologia que considere, entre outros elementos, a natureza, a complexidade, o nível de responsabilidade e os requisitos de formação dos cargos. A metodologia de classificação e a alocação das carreiras nos respectivos grupos serão definidas por lei ou, quando delegada, por ato normativo do chefe do poder Executivo.
Além disso, o projeto de lei estabelece que não deverão ser criados cargos efetivos com atribuições idênticas ou similares a cargos já existentes, de natureza temporária, obsoletos ou de baixa complexidade, compatíveis com funções auxiliares, terceirização ou soluções tecnológicas. Cargos com atribuições comuns a vários órgãos deverão ser estruturados de forma transversal, e a racionalização deve buscar a aglutinação daqueles com funções similares ou sobrepostas.
Quanto à estrutura remuneratória das carreiras, o texto prevê como diretrizes: redução do número de parcelas remuneratórias, priorizando subsídio ou vencimento básico; uniformização progressiva das estruturas remuneratórias para cargos de complexidade e funções similares em cada grupo de carreira; vedação de parcelas adicionais de caráter remuneratório que não possuam natureza contributiva previdenciária; vedação de criação ou majoração de parcelas indenizatórias não relacionadas a ressarcimento de despesas extraordinárias e eventuais decorrentes do exercício regular das atribuições do cargo; e vedação à reestruturação de carreiras dentro de um mesmo grupo, salvo para efeito de uniformização progressiva.
De maneira geral, tais medidas, como diretrizes gerais, vão na direção correta de contribuir para a simplificação, racionalização e otimização da gestão das carreiras, corrigindo importantes distorções do sistema atual.
Por fim, tanto a PEC quanto o PL preveem que cada ente federativo institua, em até dez anos, uma tabela salarial única. Quando bem concebida tecnicamente — ou seja, com o posicionamento das carreiras definido a partir de avaliações de complexidade que considerem critérios além do nível de escolaridade exigido para ingresso —, essa tabela pode gerar resultados positivos, contribuindo para a racionalização da gestão e para a redução de desigualdades. Além disso, tende a simplificar o processo de concessão de reajustes salariais, reduzindo a influência de lobbies que defendem aumentos setoriais diferenciados.
Ainda que a proposta caminhe na direção correta, seus desafios de viabilidade de implementação não devem ser desconsiderados. Como aponta o Anuário de Gestão de Pessoas no Setor Público 2024, a adoção de tabelas salariais únicas é pouco comum entre os países da OCDE e da União Europeia. Um exemplo recente de implementação bem-sucedida é o de Portugal, que reformou seu sistema remuneratório reduzindo cerca de 1.700 carreiras para três gerais e algumas especiais, e adotando uma tabela única para a maioria delas. Apesar de promover maior transparência e equidade, o modelo tende a ser mais rígido e de difícil definição — sobretudo quanto maior o número de carreiras existentes. Essa rigidez, por sua vez, pode incentivar a criação de mecanismos compensatórios paralelos, como pagamentos variáveis e indenizações, comprometendo seus objetivos originais (SIGMA, 2024). Trata-se, portanto, de uma medida de alta complexidade de implementação, mesmo no âmbito do governo federal, que, em tese, dispõe de maior capacidade institucional para conduzir reformas dessa natureza.
Pontos de atenção:
Como pontos de atenção, no entanto, destaca-se que a proposta de emenda à Constituição estabelece um prazo de quatro anos para cada ente realizar dimensionamento da força de trabalho, com metodologia definida em regulamento e ampla divulgação pública, e reestruturar o quadro de pessoal, mediante eliminação de sobreposições de atribuições e reorganização das carreiras, com a priorização de carreiras transversais aptas a atuar em diversos órgãos e entidades. A reestruturação não poderá implicar aumento de remuneração e deverá observar o nível de escolaridade exigido, a compatibilidade da remuneração ou subsídio percebido e a similitude de atribuições realizadas, inclusive quanto ao grau de complexidade.
De maneira similar ao ponto de atenção identificado no princípio de fortalecimento da capacidade estatal, emendas constitucionais devem, preferencialmente, estabelecer diretrizes gerais. Embora o dimensionamento da força de trabalho e a reestruturação das carreiras, visando maior racionalidade e redução de desigualdades, sejam necessários, não fica claro o que a medida propõe exatamente ou como seria verificado seu cumprimento. Além disso, merece atenção a factibilidade e a constitucionalidade da previsão de que “a reestruturação não poderá implicar aumento de remuneração”. Um exemplo simples ilustra o problema: se um ente federativo possui duas carreiras com atribuições similares, mas uma delas recebe vencimentos superiores, não é possível fundi-las sem nivelar a remuneração por cima, em respeito ao princípio constitucional da irredutibilidade de vencimentos previsto no artigo 37, inciso XV. Nesse caso, a fusão necessariamente implicaria aumento de remuneração para uma das carreiras.
Outro ponto de atenção relevante diz respeito à proposta — presente tanto na PEC quanto no PL — de limitar a remuneração ou subsídio inicial de cada carreira a, no máximo, 50% do valor da remuneração ou subsídio do último nível da mesma carreira, excetuando-se os casos em que o subsídio final seja de até quatro salários mínimos. O PL detalha ainda que a remuneração inicial de cada cargo não poderá superar 50% do valor do último nível da carreira, devendo a evolução remuneratória observar progressão linear e proporcional. Na prática, isso implica uma amplitude salarial mínima de 50% para os cargos cujo subsídio final seja superior a quatro salários mínimos.
A medida é positiva ao buscar corrigir distorções nas tabelas salariais que se iniciam muito próximas do teto constitucional, o que reduz a amplitude remuneratória e, consequentemente, o potencial de incentivo e motivação ao longo da carreira. No entanto, ainda não há dados que permitam estimar seus efeitos práticos sobre as diferentes carreiras e realidades dos entes federativos. A discussão sobre amplitude salarial é complexa: de um lado, argumenta-se que ela não deve ser alta, já que as atribuições legais do cargo não se alteram substancialmente ao longo da carreira, por restrições constitucionais; de outro, reconhece-se que uma amplitude muito reduzida pode enfraquecer os incentivos ao desempenho e ao desenvolvimento profissional. Assim, embora fixar uma amplitude salarial mínima pode representar um avanço ao introduzir maior racionalidade no sistema remuneratório e contribuir para a redução das desigualdades entre carreiras no serviço público, a proposta carece de evidências empíricas que sustentem o percentual escolhido, não sendo possível estimar seus efeitos práticos. Recomenda-se, portanto, avaliar possíveis alternativas a essa medida.
O último ponto de atenção refere-se à proposta de instituir o Conselho de Política de Administração e Remuneração de Pessoal (COPAR), órgão colegiado de caráter consultivo, no âmbito da União, cuja composição e funcionamento serão definidos em ato regulamento, observada em sua composição, ao menos, a presença de: um representante do MGI, que o presidirá, um representante da Fazenda, um do MPO, um da Câmara, Senado e TCU, um do poder Judiciário, um do MPU e um da DPU. Compete ao COPAR realizar estudos técnicos sobre a evolução remuneratória no setor público e privado; propor diretrizes para a fixação e a estrutura das tabelas remuneratórias; emitir parecer técnico sobre propostas de reestruturação de carreira que impliquem impacto orçamentário; sugerir, com base em critérios de sustentabilidade fiscal, inflação, mercado de trabalho e variação do Produto Interno Bruto (PIB), percentuais de reajuste para o serviço público federal e para a tabela única remuneratória federal, quando instituída; emitir parecer técnico sobre propostas de alteração no quantitativo de cargos efetivos;- outras competências definidas em ato do poder Executivo.
A criação de uma comissão responsável pela definição da política remuneratória no setor público representa um avanço importante, mas, para que a proposta seja efetiva, alguns aprimoramentos são necessários. Há dois pontos centrais de atenção: (i) a comissão não deve ser composta exclusivamente por representantes dos próprios poderes, sob o risco de institucionalizar o corporativismo no serviço público; e (ii) não deve ter caráter meramente consultivo, sob pena de limitar sua efetividade. Experiências internacionais, como as do Chile e do Reino Unido, indicam que comissões salariais externas e independentes (incluindo nomeados de fora da administração pública) configuram arranjos mais adequados de accountability, ao reduzirem — ou, ao menos, moderarem — a influência das elites burocráticas sobre a definição de suas próprias remunerações (GUEDES-REIS,2025).
No Chile, existe uma Comissão para Fixação de Remunerações, responsável por definir os salários das altas autoridades dos Poderes Executivo e Legislativo, incluindo o presidente da República, ministros, assessores diretos contratados a honorários, bem como senadores e deputados. A Comissão é composta por cinco integrantes: um ex-ministro da Fazenda, um ex-conselheiro do Banco Central, um ex-controlador da Controladoria-Geral da República, um ex-presidente do Congresso e um ex-diretor do Serviço Civil. Os membros são designados pelo presidente da República e aprovados por dois terços do Senado, para mandatos de seis anos. Entre suas atribuições estão estudar, discutir e, posteriormente, fixar as remunerações dessas autoridades, sem possibilidade legal de veto, para um período de quatro anos, devendo a deliberação ocorrer ao menos 18 meses antes do término do mandato presidencial. Embora a Comissão não abranja os demais servidores do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, as políticas remuneratórias desses grupos são definidas em lei, o que reduz significativamente a possibilidade de ocorrência de supersalários, em contraste com a realidade atual do Brasil (existência de verbas indenizatórias definidas pelos seus próprios beneficiários) (GUEDES-REIS,2025).
No Reino Unido, por sua vez, há um sistema de controle no qual o secretário-chefe do Tesouro é responsável por aprovar o pagamento de remunerações totais que ultrapassem o valor correspondente ao salário do primeiro-ministro ou que impliquem o recebimento de bônus superiores a 25 mil libras. Além disso, o país conta com Comissões de Revisão de Remunerações — órgãos independentes e de caráter consultivo — que orientam a administração pública, com base em evidências, sobre políticas de recrutamento e valorização de servidores (GUEDES-REIS,2025).
Essas comissões são responsáveis por estabelecer as faixas salariais de acordo com o nível do cargo. As propostas são submetidas à aprovação do Tesouro, no caso do Executivo, e do Lord Chancellor, autoridade administrativa máxima do Judiciário, no caso das remunerações da magistratura. No Legislativo, as remunerações dos parlamentares são definidas por uma comissão externa específica, enquanto os salários dos servidores seguem estruturas de atualização próprias, mas semelhantes às observadas no Executivo. Entre as comissões, destaca-se o Senior Salaries Review Body (SSRB), comitê responsável por revisar as remunerações das carreiras de elite, como juízes, altos oficiais das Forças Armadas e dirigentes do setor de saúde, entre outros. O SSRB é composto por oito especialistas, com mandatos de três a cinco anos, e seu processo de nomeação é regulado pelo Comissioner for Public Appointments (comissário para nomeações públicas), sendo as escolhas realizadas por um comitê de ministros com base em critérios técnicos e de experiência. A composição atual inclui ex-executivos de órgãos públicos, acadêmicos das áreas de Economia e Ciências Sociais, ex-diretores de recursos humanos do setor privado e ex-integrantes do Senior Civil Service (SCS) (GUEDES-REIS,2025).
Nesse sentido, as experiências internacionais de comissões salariais externas oferecem lições relevantes para o Brasil. Modelos baseados em instâncias independentes, protegidas da influência de lobbies corporativos, com escopo amplo — abrangendo todos os cargos e carreiras —, dotadas de mecanismos de controle ex ante e de transparência sobre seus processos decisórios, mostram-se fundamentais para o estabelecimento de um sistema efetivo de controle das remunerações no setor público. A proposta poderia ser aprimorada, portanto, ao prever a participação obrigatória de representantes de órgãos técnicos, como o IPEA, a ENAP, ou a IFI, bem como de especialistas externos à administração pública. Além disso, recomenda-se incorporar mecanismos mais robustos de atuação da comissão, inspirados nas experiências internacionais mencionadas.
Outro benchmark interessante sobre comissão salarial, neste caso para definir a política de reajuste salarial anual, é o modelo adotado pelo governo federal dos Estados Unidos. Conforme destacado no Anuário de Gestão de Pessoas no Setor Público 2024, o país conta com o Federal Salary Council, comitê responsável por elaborar, anualmente, um memorando de recomendações sobre os reajustes da tabela salarial única, com base na variação do Employment Cost Index (ECI) para cada uma das 51 localidades. O conselho é composto por três especialistas em relações de trabalho e políticas salariais, nomeados pelo presidente, além de representantes das seis maiores organizações sindicais cujas carreiras estão vinculadas à tabela única. As recomendações são analisadas por órgãos do poder Executivo, que então encaminham a proposta final para aprovação do Congresso. Essa experiência, contudo, deve ser adaptada com cautela ao contexto brasileiro, considerando os desafios mencionados anteriormente quanto à definição de modelos de governança e de accountability que assegurem a primazia do interesse público.
Princípio 3: Redução de desigualdades dentro do funcionalismo público.
Pontos de concordância:
Algumas das propostas já mencionadas também contribuem diretamente para a redução de desigualdades no funcionalismo público. Entre elas, destacam-se:
(i) a diretriz de estruturação dos cargos com base nas atividades desempenhadas, e não em órgãos específicos;
(ii) a diretriz de alinhamento entre a complexidade das atribuições e a remuneração;
(iii) a previsão de, no mínimo, vinte níveis para o alcance do nível final da carreira, com interstício mínimo de um ano entre cada progressão ou promoção; e
(iv) a uniformização progressiva das estruturas remuneratórias para cargos e funções de complexidade semelhante em cada grupo de carreira.
Ponto de atenção:
Como pontos de atenção, permanecem aqueles já destacados anteriormente, cujo potencial de impacto na redução de desigualdades é incerto. São eles:
(i) a proposta de limitar a remuneração ou o subsídio inicial de cada carreira a, no máximo, 50% do valor da remuneração ou subsídio do último nível da mesma carreira, excetuando-se os casos em que o subsídio final seja de até quatro salários mínimos. Tal proposta carece de estudos que permitam estimar seu efeito prático nas carreiras de todos os entes e poderes; e
(ii) a proposta de criação do Conselho de Política de Administração e Remuneração de Pessoal (COPAR), que, se não for adequadamente estruturado, pode favorecer a manutenção ou o aprofundamento de desigualdades, a depender do grau de influência exercido por carreiras de elite em seu funcionamento.
Princípio 4: Valorização do servidor e do serviço público.
Pontos de concordância:
No âmbito do princípio de valorização do servidor e do serviço público, além das propostas com potencial de reduzir desigualdades entre carreiras, destacam-se as seguintes diretrizes gerais para a gestão de carreiras:
(i) valorização profissional e alinhamento entre a complexidade das atribuições e a remuneração; e
(ii) reconhecimento do mérito individual e do desempenho coletivo, com base em avaliações periódicas.
Ponto de atenção:
Todos os pontos de atenção identificados no princípio anterior devem igualmente ser considerados na implementação de políticas voltadas para a valorização do servidor e do serviço público.
Princípio 5: Transparência e responsabilidade no serviço público.
Pontos de concordância:
A proposta reforça o princípio da transparência ao prever que as tabelas de classificação das carreiras sejam públicas, permanentemente atualizadas em sítio eletrônico oficial e disponibilizadas em formato de dados abertos. Além disso, contempla a transparência ativa ao assegurar a divulgação das estruturas de carreira, da alocação de servidores e das remunerações, permitindo o acompanhamento público e o controle social sobre a gestão de pessoal.
Viabilidade técnica
Assim como nas propostas que buscam combater os supersalários, parte dos desafios relacionados à viabilidade dessas propostas é de natureza política. No entanto, a complexidade técnica de implementação também é elevada. Particularmente, as propostas de limitar a remuneração inicial a 50% do teto da carreira, no caso de carreiras cujo subsídio final seja superior a quatro salários mínimos, e de instituir uma tabela salarial única por ente federativo requer análises detalhadas de impactos locais, metodologias de avaliação de complexidade das funções, ajustes complexos entre carreiras existentes e mecanismos que respeitem a irredutibilidade de vencimentos. A criação do COPAR, por sua vez, demanda definição clara de composição, independência e mecanismos de accountability, sob pena de reproduzir corporativismos ou limitar a efetividade das decisões. Além disso, iniciativas que envolvem movimentação de servidores e ingresso em níveis acima do inicial apresentam complexidade operacional, sobretudo para municípios menores, devido à necessidade de critérios objetivos de titulação, experiência e compatibilidade funcional.
Assim, embora a maioria das propostas tenha base técnica e siga na direção adequada para fortalecer a capacidade estatal, reduzir desigualdades e racionalizar o sistema, persistem os mesmos desafios de viabilidade técnica, sobretudo nos municípios, já destacados em notas técnicas anteriores. Mesmo que a reforma prometa economia no longo prazo, sua implementação pode demandar investimentos significativos em capacitação, consultorias, sistemas e comunicação — custos que municípios com baixo espaço fiscal podem não conseguir suportar. Uma possível solução seria a formação de consórcios entre municípios menores para viabilizar a implementação das mudanças ou a criação de um fundo nacional de melhoria da gestão pública com incentivos financeiros vinculados à melhoria de indicadores de capacidade estatal, hipóteses que merecem ser mais bem exploradas. Independentemente do formato adotado, é inegável que estados e municípios precisarão de apoio para implementar as medidas propostas nesta reforma. A simples inclusão de obrigatoriedades em leis ou na Constituição não garante, por si só, que essas medidas serão efetivamente aplicadas.
Referências bibliográficas
OCDE, 2022. OECD Public Service Leadership and Capability Review of Brazil. Disponível em: https://www.gov.br/servidor/pt-br/assuntos/laboragov/oecd-public-service-leadership-and-capability-review-of-brazil-2.pdf
SIGMA, 2024. Salary systems in public administration and their reforms. SIGMA Paper No.71. Disponível em: https://www.oecd.org/content/dam/oecd/en/publications/reports/2024/06/salary-systems-in-public-administration-and-their-reforms_40fa6658/8f08a005-en.pdf.
1 Relatório de benchmark internacional sobre teto salarial no setor público, produzido por Sérgio Guedes-Reis e encomendado pela República.org e Movimento Pessoas à Frente. A publicação desse relatório ocorrerá em novembro de 2025.