Esta nota técnica analisa os PLs 2.829 e 6.070, de 2025, que criam novos adicionais no TCU e no Senado e abrem espaço para pagamentos acima do teto. Os projetos ampliam distorções, elevam custos, reduzem a transparência e reforçam desigualdades no serviço público. A República.org apresenta aqui sua avaliação, guiada por seus princípios de gestão de pessoas, e aponta por que mudanças dessa natureza caminham na direção contrária de uma reforma remuneratória justa, racional e sustentável.
Foi aprovado no dia 26/11, na Câmara dos Deputados, e no dia 03/12, no Senado, o Projeto de Lei n.º 2829/2025, que reestrutura a carreira dos servidores do Tribunal de Contas da União (TCU) e agora vai à sanção presidencial. A proposta redefine a estrutura das carreiras, estabelece requisitos de ingresso e promoção, fixa reajustes para os vencimentos básicos e cria duas novas parcelas remuneratórias: a Gratificação de Desempenho e Alinhamento Estratégico (GDAE) e o Regime Especial de Dedicação Gerencial (IREDG). Este último ponto tem despertado preocupação por reproduzir estratégias de remuneração consideradas problemáticas no setor público e por abrir brechas para pagamentos acima do teto constitucional. De acordo com estimativas da Câmara dos Deputados que considera os reajustes e os novos adicionais, a remuneração de um auditor federal no último nível da carreira pode passar dos atuais R$ 37 mil para R$ 58,6 mil em 2029, um aumento de até 56%.
A Gratificação de Desempenho e Alinhamento Estratégico corresponderá a um pagamento semestral de no mínimo 40% e no máximo 100% do vencimento básico, conforme critérios a serem definidos pelo TCU, e estará sujeita ao teto salarial constitucional. Embora se preveja sua vinculação à avaliação de desempenho e à entrega de resultados semestral, o adicional será pago também a aposentados e pensionistas, inclusive àqueles com benefícios concedidos antes da vigência da lei. A GDAE substituirá a Gratificação de Desempenho atualmente vigente no TCU, que pode alcançar até 80% do salário-base. Dessa forma, a nova gratificação pode representar um incremento de até 20 pontos percentuais quando aplicada em seu valor máximo.
O Regime Especial de Dedicação Gerencial (IREDG), por sua vez, institui licença compensatória pelo “exercício de função singular e acúmulo de atividades relevantes” para servidores ocupantes de funções de confiança. A licença será de, no mínimo, um dia a cada dez dias de trabalho e, no máximo, um dia a cada três. Esses dias poderão ser convertidos em pagamentos de até 25% do salário-base, classificados como verba indenizatória. Por esse motivo, ficarão fora do teto remuneratório e não incidirão imposto de renda nem contribuição previdenciária. Até a regulamentação definitiva, será aplicado o percentual provisório de 10%.
Dias após a aprovação do projeto mencionado, o Senado Federal aprovou o Projeto de Lei n.º 6.070/2025, que agora segue para a Câmara dos Deputados. A proposta concede aos servidores do órgão as mesmas gratificações previstas para o TCU: a Gratificação de Desempenho e Alinhamento Estratégico, correspondente a um percentual mínimo de 40% e máximo de 100% incidente sobre o vencimento básico do cargo. Assim como no caso do TCU, essa gratificação terá vigência semestral e será paga a aposentados e pensionistas. O projeto também institui a licença compensatória, que varia de um dia a cada dez dias de trabalho a um dia a cada três, destinada aos servidores que ocupem cargos em comissão, exerçam funções comissionadas ou ocupem cargos efetivos de assessoramento superior. Ademais, a proposta prevê reajustes no vencimento básico das carreiras, bem como nas gratificações de Atividade Legislativa e de Representação.
Esta breve nota técnica apresenta a posição da República.org sobre os pontos destacados acima, à luz dos nossos cinco princípios norteadores para avaliação de propostas de políticas de gestão de pessoas. Em síntese, ambas propostas constituem mais um exemplo da corrida por privilégios, na qual categorias de elite do funcionalismo público se mobilizam para obter novos adicionais remuneratórios. Trata-se de um comportamento incompatível com o que se espera de instituições incumbidas de zelar pelo bom uso dos recursos públicos. É necessário enfrentar a baixa atratividade dos cargos de confiança, mas essa solução não pode ocorrer por meio de mecanismos improvisados que ampliam a desigualdade no setor público e desrespeitam o dinheiro do contribuinte. Torna-se, portanto, urgente reformar o sistema remuneratório e de carreiras do serviço público, de modo a torná-lo mais atrativo, equitativo e alinhado aos princípios republicanos.
Princípio 1: contribuição para o fortalecimento da capacidade estatal e da geração de entregas para os cidadãos
Não há evidências de que o pagamento de bônus de desempenho tenha contribuído para o fortalecimento da capacidade estatal do TCU ou do Senado. Não foram identificados relatórios que avaliem a efetividade dessa política — por exemplo, estudos que indiquem se, na prática, todos os servidores têm recebido notas máximas, o que tornaria o modelo incapaz de diferenciar desempenhos e, portanto, de operar como um mecanismo de incentivo efetivo.
Além da falta de transparência sobre dados da política e sua efetividade, o pagamento da gratificação também a servidores inativos reforça o mau desenho do instrumento, que passa a operar, na prática, como um mecanismo geral de aumento remuneratório. A desvinculação entre o benefício e os resultados entregues gera efeitos negativos para a estrutura de incentivos no setor público e enfraquece a credibilidade das gratificações e bônus como ferramentas para promover desempenho.
Como demonstra o Anuário de Gestão de Pessoas no Serviço Público 2025, a literatura acadêmica sobre o tema indica que a remuneração variável por desempenho tende a funcionar melhor em cargos que envolvem tarefas repetitivas e de fácil mensuração, tipicamente as desempenhadas por servidores de nível operacional. Para os demais cargos da administração pública, especialmente os de médio e alto escalão, as evidências — sobretudo as de natureza causal — são mais escassas, dada a dificuldade de mensurar o desempenho de forma objetiva e padronizada. Não há, portanto, comprovação de que o bônus de desempenho seja uma condição necessária ou suficiente para promover, de maneira ampla e sustentável, a melhoria do desempenho no setor público.
Princípio 2: simplificação, racionalização e otimização da gestão do Estado
Além da Gratificação de Desempenho e Alinhamento Estratégico, que pouco contribui para a racionalização e a melhoria da gestão pública, a licença compensatória concedida aos servidores do TCU — posteriormente replicada pelo Senado Federal — é ainda mais preocupante. Trata-se de uma reprodução explícita da estratégia adotada pela magistratura e pelo Ministério Público, conforme reconhecido pelo próprio relatório aprovado referente ao TCU, que tem impulsionado a expansão de pagamentos acima do teto constitucional.
Estudo da Transparência Brasil e da República.org (2025) identificou que a conversão de gratificação por acúmulo de função/exercício e licença compensatória em pecúnia gerou um custo de R$ 2,3 bilhões em 2024 apenas para magistrados, sendo R$ 1,2 bilhões expressamente pagos como licença compensatória, configurando um dos penduricalhos mais onerosos para a administração pública. Cabe destacar, ainda, que esta é a primeira vez que a licença compensatória é instituída por meio de lei, e não por atos administrativos, como ocorreu no caso da magistratura e do Ministério Público. Abre-se, portanto, um precedente preocupante de institucionalização deste penduricalho.
Além disso, não há respaldo jurídico consistente para classificar este benefício como verba indenizatória. Esse tipo de parcela deve compensar gastos efetivamente arcados pelo servidor no exercício de suas atividades, sendo, portanto, específica, eventual e transitória — e, assim, não deve integrar a expectativa remuneratória, como apontam análises das duas organizações. A licença compensatória prevista em ambos projetos, contudo, remunera o excesso de trabalho e a dedicação ampliada de servidores que ocupam cargos de direção e assessoramento, características típicas de uma parcela remuneratória, e não indenizatória. É evidente que o benefício foi criado para mitigar a baixa atratividade desses cargos para servidores efetivos, especialmente aqueles que já recebem salários próximos ao teto constitucional. No entanto, a solução para esse problema não reside na criação de novos penduricalhos, mas sim em uma reforma estrutural das remunerações no serviço público.
Dessa forma, embora outras medidas previstas no projeto ampliem distorções remuneratórias, a licença compensatória é o principal ponto de atenção, por instrumentalizar de forma abusiva dispositivos legais e viabilizar pagamentos acima do teto, além de criar privilégios tributários ao isentar parcelas sobre as quais deveriam incidir impostos e contribuições.
Cabe destacar, ainda, a existência da Gratificação de Controle Externo (GCE), no âmbito do TCU, e da Gratificação de Atividade Legislativa, destinada aos servidores do Senado. A primeira delas passa a ter cálculo uniforme, fixado em 50% sobre o vencimento básico do servidor no padrão e classe que ocupa. A gratificação do Senado, por sua vez, tem fatores específicos por carreira. A manutenção — e, em alguns casos, a ampliação — de gratificações sem justificativa técnica para sua existência reforça a falta de racionalidade da política de pessoal. Na ausência de uma política estruturada e periódica de reajustes salariais, carreiras e órgãos acabam recorrendo a subterfúgios para promover aumentos remuneratórios.
Princípio 3: redução de desigualdades dentro do funcionalismo público
Conforme exposto acima, os benefícios previstos nestes projetos de lei aumentam o risco de proliferação dos supersalários — e, consequentemente, de aumento da desigualdade remuneratória no funcionalismo —, já que apenas poucas carreiras de elite conseguem competir nesta corrida por privilégios.
Estudo recém-publicado pela República.org e pelo Movimento Pessoas à Frente, elaborado por Sérgio Guedes-Reis, analisou dados obtidos por raspagem (webscraping) na seção de transparência remuneratória do site do TCU, abrangendo servidores, aposentados e pensionistas entre agosto de 2024 e julho de 2025. O levantamento mostra que 16,5% dos servidores do tribunal receberam salários acima do teto constitucional. No Senado Federal este percentual foi de 3,1%, considerando a API de dados do mesmo período.
A aprovação dos novos benefícios previstos nos projetos de lei, portanto, tende a ampliar este percentual — em contraste com os 70% dos servidores públicos do país que recebem até 6 mil reais, segundo o Anuário de Gestão de Pessoas no Serviço Público 2025.
Princípio 4: valorização do servidor e do serviço público
Embora as medidas destacadas nestes projetos sejam apresentadas sob a narrativa de valorização do servidor e do serviço público, é evidente que qualquer proposta que amplie o risco de proliferação de supersalários — ao acentuar desigualdades e comprometer a legitimidade do funcionalismo — não contribui, em última instância, para o fortalecimento deste princípio.
Princípio 5: transparência e responsabilidade no serviço público
No que concerne à transparência remuneratória, o TCU enfrenta problemas consideráveis. Segundo Sérgio Guedes-Reis, autor do estudo supracitado, contrariamente ao enunciado no art. 8°, parágrafos 2° e 3° da Lei de Acesso à Informação (Lei n° 11.527/2011), o Tribunal não fornece os microdados em formato agregado (em relatório ou planilha) com as informações salariais dos seus servidores. O órgão tampouco disponibiliza mecanismos que viabilizem a obtenção automatizada desses dados, como APIs. Na prática, isso significa que, salvo a partir da adoção de técnicas de raspagem de dados, a obtenção da totalidade de dados remuneratórios para o conjunto de servidores do TCU depende do clique no nome de cada servidor e da cópia manual da informação para cada indivíduo e mês. De fato, como mostra a seção de transparência específica sobre “Autoridades e Servidores”, não há formatos disponíveis para download dos dados.
Além disso, na discriminação individual das remunerações dos servidores, não há transparência com relação à composição das parcelas do componente “remuneração básica” da parcela “vencimentos e vantagens” do total salarial pago ao servidor. Atualmente, essa remuneração básica é composta pelo vencimento básico (VB), pela gratificação de desempenho (GD) e pela gratificação de controle externo (GCE). É de particular relevância a GD, em tese variável conforme o desempenho do servidor e correspondendo a uma parcela entre 48% e 80% do VB do topo da carreira. Com os dados disponíveis, não é possível saber qual foi a performance obtida por cada servidor.
Cabe destacar, ainda, que, segundo o relatório de avaliação da qualidade do Portal da Transparência elaborado pelo próprio órgão, o nível de satisfação do público externo é de apenas 55%, em contraste com os 98,7% verificados entre o público interno — ainda que o número de respondentes seja bastante reduzido.
No que se refere a problemas de transparência relacionados à questão remuneratória dos servidores do Senado, o autor destaca diversas necessidades de melhoria. Primeiramente, ressalta-se que a planilha disponibilizada em formato CSV na seção de transparência do Portal do Senado não identifica os servidores listados, nem nominalmente, nem a partir do registro de matrícula. Diferentemente do TCU, é possível obter os nomes dos servidores do órgão e sua remuneração por meio de API. Contudo, a disponibilização das planilhas identificadas apenas por meio de webservice colide com o espírito da Lei de Acesso à Informação, que advoga pela divulgação das informações públicas “em local de fácil acesso” (art. 8º, caput), “de forma transparente, clara e em linguagem de fácil informação”.
Em segundo lugar, assim como no TCU, não ocorre a discriminação total dos componentes das parcelas remuneratórias dos servidores do Senado. Ao não receberem por subsídio, esses servidores percebem salário composto por diversas parcelas: o vencimento básico (VB), a gratificação de atividade legislativa (GAL), a gratificação de representação (GR) e a gratificação de desempenho (GD). No caso da GD, em tese ela deve variar entre 40% e 100% do VB. Contudo, na medida em que as planilhas disponibilizadas apresentam todos esses dados consolidados na rubrica “remuneração básica”, é possível deduzir, sem plena precisão, qual seria o desempenho individual de cada servidor a partir de “engenharia reversa”, isto é, com base na decomposição individual da rubrica nas parcelas mencionadas. Na prática, não tendo havido a regulamentação da GD, todos os servidores recebem o equivalente a 60% do VB – fato que converte uma parcela destinada a estimular desempenho dentre os servidores em uma parcela que se assemelha a um penduricalho. O mesmo problema ocorre quanto a outras parcelas, como as Vantagens Pessoais Nominalmente Identificadas (VPNIs); na medida em que são apresentadas de forma agregada, inviabiliza-se a compreensão sobre sua natureza (auxílio-alimentação, auxílio creche, adicionais de especialização, etc.).
Os projetos de lei, entretanto, não apresentam qualquer medida destinada a aprimorar a transparência dos dados dos órgãos. Tal omissão agrava o problema, pois, ao criar novas verbas remuneratórias, dificulta a identificação detalhada e individualizada desses pagamentos.