Entre desenvolvimento e punição: o dilema da avaliação de desempenho no serviço público

Publicado em: 30 de setembro de 2025

Índice:
O falso dilema entre desenvolvimento e punição
A armadilha das “fórmulas automáticas” de avaliação de desempenho
Aprendizado organizacional é a dimensão mais valiosa (e mais difícil) da avaliação
Em busca do equilíbrio: princípios para uma reforma eficaz
O desafio da implementação de sistemas de avaliação de desempenho
Além da dicotomia desenvolvimento e punição

Uma pergunta que assombra gestores públicos ao redor do mundo é simples: para que servem as avaliações de desempenho? A resposta revela tensões fundamentais que vão muito além de questões técnicas sobre formulários e métricas. Ela expõe diferentes concepções sobre o próprio papel do Estado, os limites da accountability democrática e a natureza da motivação no serviço público.

Essa questão se torna ainda mais complexa quando reconhecemos que as informações de desempenho servem simultaneamente a três propósitos distintos, cada um com sua própria lógica e dinâmica. A prestação de contas busca comunicar e justificar o desempenho diante de cidadãos e supervisores; o direcionamento e controle visa influenciar comportamentos e orientar recursos; e a promoção do aprendizado procura melhorar políticas e capacidades organizacionais. Compreender essas dimensões (e suas inevitáveis tensões!) é fundamental para qualquer tentativa séria de reforma dos sistemas de gestão de pessoas no setor público.

O falso dilema entre desenvolvimento e punição

O debate sobre avaliação de desempenho no setor público costuma se estruturar em torno de uma dicotomia enganosa: de um lado, a defesa de sistemas voltados ao desenvolvimento profissional e à capacitação contínua; de outro, a ênfase em mecanismos mais rígidos de responsabilização e consequências para o baixo desempenho. Essa oposição, embora recorrente, é conceitualmente equivocada.

A experiência norte-americana com o Government Performance and Results Modernization Act (GPRAMA) mostra que é possível superar essa falsa escolha. A legislação exige que órgãos federais integrem avaliação de desempenho, planejamento estratégico e gestão por resultados, por meio de instrumentos como as learning agendas  — planos de aprendizado institucional que articulam perguntas avaliativas prioritárias, direcionam esforços de geração de evidências e conectam o processo de prestação de contas à aprendizagem organizacional. O GPRAMA também estabelece metas departamentais e interdepartamentais com ciclos de monitoramento definidos, recomendando que essas metas sirvam como base para o desdobramento dos objetivos estratégicos do órgão em metas coletivas e individuais e para a coordenação entre equipes.

Esse modelo pressupõe uma lógica de “desenvolvimento primeiro”, mas sem abrir mão da possibilidade de consequências. A legislação prevê, por exemplo, o desligamento por baixo desempenho. No entanto, a prática revela limitações: entre 0,2% e 0,4% dos servidores federais são efetivamente demitidos por razões de desempenho.Na iniciativa privada, essas taxas variam entre 1,1% e 1,3% (ver tabela 24, p.35), o que sugere hesitação gerencial diante dos instrumentos de controle disponíveis.

Esse paradoxo revela uma lição importante: sistemas eficazes reconhecem que desenvolvimento e responsabilização não são objetivos excludentes, mas dimensões complementares de uma mesma arquitetura institucional. O desafio não está em escolher entre uma lógica formativa e uma punitiva, mas em calibrar ambos os vetores segundo o contexto e as necessidades de cada organização.

A armadilha das “fórmulas automáticas” de avaliação de desempenho

Sistemas que enfatizam excessivamente a dimensão punitiva do controle tendem a gerar efeitos colaterais prejudiciais ao desempenho organizacional. A experiência norte-americana com quotas de avaliação  — na qual gestores eram obrigados a classificar uma porcentagem fixa de servidores como inadequados, independentemente do desempenho real da equipe  — demonstra os riscos dessa abordagem. O sistema criou incentivos perversos que desmotivaram os melhores funcionários e geraram uma cultura organizacional defensiva, levando ao seu eventual abandono.

O Reino Unido seguiu trajetória semelhante ao adotar, em 2012, um sistema de distribuição forçada de desempenho, conhecido como guided distribution. Essa abordagem foi descontinuada em 2019, diante de críticas recorrentes quanto aos seus efeitos organizacionais. Desde então, o país tem explorado caminhos alternativos, estruturando um modelo híbrido que busca preservar a diferenciação de desempenho sem recorrer à imposição de curvas rígidas.

Esse novo arranjo combina diretrizes de distribuição esperada, categorização qualitativa, limites financeiros e mecanismos de moderação. Embora não obrigatória, a orientação sugere uma distribuição aproximada entre os níveis de avaliação: 5% dos servidores no grupo “parcialmente atendeu”, 60% em “atendeu”, 20% em “alto desempenho” e 15% em “superou”. A proposta é guiar expectativas e promover consistência sem engessar o julgamento dos gestores.

Do ponto de vista orçamentário, o montante reservado para pagamentos por desempenho segue limitado a uma fração (3,3%) da folha salarial, no caso do Senior Civil Service (SCS), e com tetos estabelecidos por pessoa, tanto para bonificações ao longo do ano quanto para gratificações ao final do ciclo.

Para promover alinhamento entre órgãos, realizam-se painéis locais de moderação e uma checagem interministerial de consistência. Essa etapa não obriga a revisão de notas, mas permite questionar distorções e fortalecer padrões comuns de avaliação. Além disso, os departamentos passaram a reportar formalmente suas distribuições de desempenho ao Cabinet Office, o órgão que dá suporte direto ao Primeiro-Ministro na coordenação do governo, cuidando de temas transversais de gestão e garantindo o alinhamento estratégico entre os ministérios.

Aprendizado organizacional é a dimensão mais valiosa (e mais difícil) da avaliação

Entre as três dimensões da avaliação, a promoção do aprendizado é, possivelmente, a mais valiosa em termos de aprimoramento organizacional sustentável. Contudo, é também a mais difícil de operacionalizar, pois depende não apenas de sistemas de informação sofisticados, mas sobretudo de culturas organizacionais que valorizem a reflexão crítica, a experimentação controlada e a disposição para reconhecer erros com honestidade.

Tratar o baixo desempenho com seriedade exige coragem institucional para encarar o que não funcionou, entender as causas e testar caminhos de melhoria. Sem essa honestidade analítica, não há aprendizado real. Ao mesmo tempo, a transparência, embora essencial para a legitimidade democrática, pode ser mal utilizada. Quando os dados de desempenho são transformados em instrumentos de punição ou humilhação, o efeito tende a ser o fechamento defensivo, não a abertura ao aprendizado.

É por isso que a maior parte dos países evitam divulgar metas individuais de servidores. A exceção a essa regra costuma se aplicar, com nuances, aos dirigentes públicos em países com políticas estruturadas de gestão de lideranças. O Chile, por meio do Sistema de Alta Dirección Pública, publica todos os “Convenios de Desempeño” (acordos de desempenho) após a nomeação das lideranças. Em Portugal, a “Carta de Missão“, que define as metas do cargo, já é divulgada no processo seletivo. Em contraste, países como EUA e Reino Unido tendem a manter esses acordos (chamados Performance Agreements) confidenciais, mas o acesso a esaes documentos poderia, potencialmente, ser solicitado por meio das leis de acesso à informação pública.

A intenção é impedir “caças às bruxas” e proteger o espaço necessário para uma análise produtiva. Em vez disso, opta-se por padrões institucionais anonimizados, que permitam comparações entre unidades, identificação de anomalias e compreensão contextualizada dos resultados. Esses dados só fazem sentido se acompanhados de informação qualitativa, com noção clara de que metas precisam ser calibradas continuamente — tanto para refletir as condições reais quanto para estimular avanços factíveis.

A chave está em reconhecer que a prestação de contas não deve ser um fim em si mesma, mas um meio para promover melhor desempenho organizacional. Isso requer sofisticação na comunicação dos resultados, contextualizando-os adequadamente, calibrando os incentivos e protegendo os espaços institucionais do aprendizado.

Em busca do equilíbrio: princípios para uma reforma eficaz

Um levantamento de práticas internacionais, que analisou as experiências de Alemanha, Chile, Estados Unidos, Portugal, Reino Unido e Uruguai, aponta alguns princípios orientadores para sistemas que buscam equilibrar as três dimensões da avaliação.

O estudo, realizado para a República.org, mostra que, primeiro, clareza de propósito e transparência processual são fundamentais. Servidores devem compreender não apenas os critérios de avaliação, mas também qual dimensão está sendo enfatizada em cada contexto e por quê. A experiência norte-americana com as ‘learning agendas’ é um bom exemplo. Elas funcionam como uma ponte entre a gestão e a pesquisa, transformando as dúvidas dos gestores sobre o impacto de suas políticas em perguntas claras que guiam a geração de evidências. Esse processo, por sua vez, alimenta a criação de indicadores de monitoramento mais precisos e de avaliações de desempenho mais conectadas aos objetivos reais.

Segundo, o desenvolvimento deve ser a resposta primária, mas não única, ao baixo desempenho. Os sistemas mais eficazes combinam apoio com consequências, e a experiência uruguaia detalha como fazer isso na prática. Em vez de uma medida punitiva imediata, uma avaliação insatisfatória no Uruguai resulta na oferta de treinamento, aconselhamento e acompanhamento para o servidor. A consequência mais séria só é considerada após reincidência, quando duas avaliações negativas consecutivas caracterizam ‘inaptidão’. Mesmo nesse cenário, a demissão não é automática, e a administração pode primeiro tentar o remanejamento do funcionário. Somente se a insuficiência persistir, demonstrando que o servidor não atende permanentemente aos requisitos do cargo, é que se formaliza o processo de demissão por ineficácia, conforme previsto em lei e com ampla garantia de defesa. O sistema é, portanto, generoso em oportunidades de melhoria, mas estabelece expectativas e limites claros.

Terceiro, sistemas devem incorporar mecanismos robustos de aprendizado sobre sua própria efetividade. As “learning agendas” introduzidas pelo GPRAMA oferecem um modelo de como institucionalizar a reflexão contínua sobre o que funciona, permitindo ajustes baseados em evidências sobre os efeitos reais das políticas de gestão de pessoas.

Quarto, a integração com objetivos organizacionais estratégicos é essencial. Avaliações desconectadas da missão institucional tendem a se tornar exercícios burocráticos que consomem recursos sem gerar valor. O desafio está em alinhar desenvolvimento pessoal com resultados institucionais de forma que uma dimensão reforce a outra.

Finalmente, proporcionalidade e graduação nas consequências são mais eficazes que punições draconianas. O objetivo deve ser criar sistemas que sejam rigorosos o suficiente para manter padrões, mas não tão severos que inibam a assunção de riscos necessária para a inovação no setor público.

O desafio da implementação de sistemas de avaliação de desempenho

Reconhecer esses princípios é apenas o primeiro passo. A implementação eficaz requer, primordialmente, investimentos substanciais na formação de lideranças capazes de conduzir processos de feedback construtivos e desenvolvimento profissional. A eficácia de qualquer sistema de avaliação depende fundamentalmente da qualidade dos gestores que o implementam  — uma lição clara da experiência internacional.

Como mostram as críticas à ortodoxia das avaliações formais excessivamente burocratizadas, esses sistemas podem prejudicar precisamente o tipo de feedback honesto e desenvolvimento relacional que promovem aprendizado genuíno. Isso sugere que reformas devem priorizar não apenas estruturas formais, mas também o desenvolvimento de competências interpessoais e de coaching entre gestores públicos.

Além disso, é necessário desenvolver capacidades analíticas que permitam aprender continuamente sobre o que funciona em contextos específicos. Reformas devem ser concebidas como experimentos controlados, com mecanismos para ajustes baseados em evidências sobre seus efeitos reais na motivação, desempenho e resultados organizacionais.

Além da dicotomia desenvolvimento e punição

O dilema entre desenvolvimento e punição na avaliação de desempenho não se resolve por meio da escolha de um sobre o outro. Resolve-se através da construção de sistemas que reconhecem a necessidade de calibrar cuidadosamente as três dimensões da avaliação  — prestação de contas, direcionamento e controle, além de promoção do aprendizado, de acordo com contextos organizacionais e objetivos específicos.

A experiência internacional demonstra que isso é possível, mas requer sofisticação conceitual, competência técnica e, sobretudo, a maturidade política para aceitar que não existem soluções simples para desafios complexos. O objetivo final deve ser criar condições para que servidores públicos realizem seu potencial máximo no serviço aos cidadãos, e e isso só é possível quando combinamos expectativas claras, apoio generoso e consequências proporcionais de forma inteligente e equilibrada.

A sociedade brasileira merece um serviço público de excelência, e isso requer sistemas de gestão que transcendam falsas dicotomias para abraçar a complexidade inerente à gestão de pessoas em organizações públicas. O caminho para frente não está na escolha entre desenvolvimento ou punição, mas na construção de sistemas que integrem ambos de forma que uma dimensão reforce e potencialize a outra.

Rafael Leite: Especialista em reforma e modernização do Estado e atualmente bolsista do programa German Chancellor Fellowship da Fundação Alexander von Humboldt. No âmbito dessa iniciativa, atua como pesquisador visitante no Instituto Alemão de Pesquisa em Administração Pública (FÖV), onde coordena um projeto sobre a reforma da alta direção pública na Alemanha. Foi pesquisador associado no Instituto Millenium (Brasil) e no New South Institute (África do Sul). É graduado em Administração Pública pela FGV/EAESP e colaborou com instituições como a Fundação Lemann, Vetor Brasil, Comunitas e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Sua trajetória inclui passagens pelo governo do Chile e pela Prefeitura de São Paulo.

A nota é de responsabilidade dos autores e não traduz necessariamente a opinião da República.org nem das instituições às quais eles estão vinculados.

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