Nota técnica: cargos comissionados na Reforma Administrativa

Publicado em: 10 de novembro de 2025

Normas sobre cargos comissionados – Proposta de Emenda à Constituição (PEC) e Marco Legal da Administração Pública (PL)

A República.org analisa as propostas da Reforma Administrativa sobre cargos comissionados, tanto na PEC quanto no Marco Legal da Administração Pública, e aponta os riscos de uma limitação rígida de percentuais e da criação de categorias fixas. A nota discute caminhos para ampliar a profissionalização, a diversidade e a transparência na ocupação desses cargos, e destaca também os desafios de implementação das medidas previstas.

Alinhamento geral

Predominantemente desalinhado: há divergências significativas em relação à proposta, com alguns pontos de convergência.

Síntese das recomendações

  • Retirar a limitação global de 5% de cargos comissionados por ente e/ou substituir pela limitação de um percentual maior por unidade
  • Retirar a divisão de cargos comissionados nas três categorias propostas, bem como as respectivas limitações máximas de 5% para cargos estratégicos e mínima de 60% de ocupação de cargos estratégicos por servidores efetivos.
  • Prever a fixação de um percentual mínimo de cargos a serem preenchidos por processo seletivo em cada nível hierárquico.
  • Retirar previsão de avaliação de desempenho diferenciada para cargos estratégicos (ver recomendação específica sobre isso na nota técnica de gestão do desempenho).
  • Explicitar cotas proporcionais da ocupação de mulheres e pessoas negras em cargos comissionados, considerando um percentual factível e explicitando que elas devem ser aplicadas em cada nível hierárquico. 
  • Prever diretrizes sobre padronização de informações entre portais de transparência de diferentes entes e poderes ou instituir um sistema eletrônico nacional, com prazo de adequação para todos os entes e poderes, escalonado pelo tamanho do município (tal como foi feito na Lei Complementar nº 131/2009). 

Análise por princípios

Princípio 1: Contribuição para o fortalecimento da capacidade estatal e da geração de entregas para os cidadãos. 

No contexto do fortalecimento da capacidade estatal, especialistas costumam apontar três problemas recorrentes relacionados à ocupação de cargos comissionados. O primeiro refere-se à alta rotatividade, que pode comprometer a continuidade das políticas públicas. O segundo problema, relacionado ao anterior, refere-se ao quantitativo desses cargos, particularmente os casos de órgãos ou unidades compostos majoritariamente ou exclusivamente por comissionados não efetivos, embora ainda faltem dados abrangentes e consistentes que permitam dimensionar com precisão a representatividade desses casos entre os entes subnacionais. O terceiro diz respeito à baixa profissionalização (ou alta politização) desses cargos, frequentemente preenchidos com base em critérios de confiança ou conexão política (CORRÊA et al. 2020), sem a devida consideração das competências de gestão exigidas para funções de liderança. 

Pontos de concordância:

A proposta de PEC determina que pelo menos 50% dos cargos em comissão de cada ente devem ser ocupados por servidores efetivos, percentual um pouco abaixo do praticado pelo governo federal (60%; Lei nº 14.204/2021). Essa é uma medida adequada para mitigar o problema da falta de perenidade das políticas públicas decorrentes da alta rotatividade, além de contribuir para a padronização das regras entre governo federal e os entes subnacionais. 

Ponto de atenção:

A proposta da PEC e do Marco Legal da Administração Pública também estabelece a limitação dos cargos comissionados a 5% do total de cargos do ente federativo, podendo chegar a 10% em municípios com até 10 mil habitantes. Entretanto, dados do Anuário de Gestão de Pessoas no Serviço Público 2025, divulgado pela República.org com base na MUNIC (IBGE, 2023), indicam que 56,2% dos 5.509 municípios analisados têm menos de 10% de vínculos exclusivamente comissionados. A distribuição por porte populacional mostra que a maioria dos municípios mantém esse percentual em todas as faixas, exceto nos municípios com até 5 mil habitantes, onde apenas 40% apresentam até 10% de vínculos comissionados. Por fim, apenas 5,1% dos municípios analisados possuem mais de 30% de cargos exclusivamente comissionados, evidenciando que casos de elevada concentração não são a regra geral. Em relação aos estados, todos possuem menos de 11%, com exceção de Roraima (17,2%) e Tocantins (43,3%). 

Nesse sentido, faltam dados e evidências que fundamentem tecnicamente a proposta de limitar de forma absoluta os cargos comissionados a, no máximo, 5% do total de vínculos. Se o objetivo é evitar casos, provavelmente excepcionais — lembrando que não há informações detalhadas por unidade, órgão ou ente sobre a representatividade — de unidades ou órgãos majoritariamente compostos por vínculos exclusivamente comissionados, recomenda-se que o percentual máximo seja definido considerando cada unidade individualmente, e não em relação ao total de vínculos do ente. Por exemplo, poderia-se estabelecer que o máximo de cargos apenas comissionados em cada unidade seja de até 20% do total de pessoas da unidade. Cabe destacar, entretanto, que tal parâmetro seria arbitrário, dada a ausência de dados robustos que permitam uma definição técnica mais precisa.

Além da limitação do quantitativo geral, há também a proposta de uma nova classificação para os cargos em comissão e funções de confiança na administração pública, dividindo-os em três categorias: estratégicos, voltados à alta administração e limitados a 5% do total de cargos comissionados; táticos, destinados à média gerência e à direção de políticas ou áreas específicas; e operacionais, voltados à chefia imediata e condução de equipes. Os cargos estratégicos seriam aqueles com maior impacto institucional, como os que envolvem formulação ou avaliação de políticas públicas, gestão de projetos prioritários, alta complexidade técnica, articulação interinstitucional em temas sensíveis ou gestão orçamentária relevante. A designação de um cargo como estratégico deverá ser formal e fundamentada, com base em parecer técnico emitido antes da decisão do chefe do respectivo poder ou órgão autônomo. Além disso, para os cargos estratégicos, haveria também a limitação de que pelo menos 60% sejam ocupados por servidores efetivos ou empregados públicos. 

Há, no entanto, dois problemas na proposta de classificação dos cargos comissionados em três categorias, com estabelecimento de percentual mínimo de ocupação por servidores efetivos nos cargos estratégicos. Primeiro, a classificação pode variar significativamente entre os entes federativos, dada a subjetividade na definição das categorias. Por exemplo, um diretor de escola poderia ser considerado um cargo tático, dependendo da estrutura hierárquica, embora desempenhe função claramente estratégica, ao influenciar diretamente os resultados educacionais. Além disso, ao limitar que pelo menos 60% dos cargos estratégicos sejam ocupados por servidores efetivos, a proposta restringe a renovação e a oxigenação da burocracia, o que pode ser contraproducente para o fortalecimento da capacidade estatal. A República.org defende, portanto, a retirada da classificação dos cargos em três categorias, assim como a supressão dos percentuais propostos, tanto o limite máximo de 5% para cargos estratégicos quanto o mínimo de 60% de ocupação por servidores efetivos nesses cargos.

As propostas também definem requisitos mínimos de qualificação para os ocupantes de cargos em comissão e funções de confiança estratégicos, reforçando critérios de profissionalização e mérito. Para ocupar essas posições, o processo seletivo será obrigatório e o candidato deverá atender a pelo menos um dos seguintes critérios: ter experiência profissional mínima de três anos na área de atuação do cargo; ter exercido cargo ou função de confiança por no mínimo três anos em qualquer poder ou órgão autônomo; possuir título acadêmico de especialista, mestre ou doutor em área relacionada às atribuições do cargo; ou ter concluído, nos dois anos anteriores à nomeação, curso de capacitação ou certificação profissional com carga mínima de 120 horas em área correlata. Para os demais tipos de cargos comissionados, o processo seletivo será preferencial, mas a dispensa deverá ser justificada por escrito, com base na especificidade do cargo ou na notória especialização do nomeado. 

De maneira geral, a proposta avança na direção correta ao mitigar o problema da baixa profissionalização dos cargos comissionados. Contudo, com a retirada da classificação em três categorias, recomenda-se a previsão de fixação de um percentual mínimo de cargos a serem preenchidos por processo de seleção ou pré-seleção em cada nível hierárquico, independentemente de serem ocupados por servidores efetivos ou por recrutamento externo. O fundamental aqui é não confundir profissionalização com ocupação por servidores de carreira, já que nem todos os servidores efetivos possuem — ou necessariamente devem possuir — as competências exigidas para funções de liderança. Assim, a profissionalização dos cargos se dará por meio de processos de seleção ou pré-seleção adequados, e não apenas pela titularidade de servidores efetivos.

Por fim, a proposta estabelece que os ocupantes de cargos em comissão e funções de confiança estratégicos sejam submetidos a avaliação de desempenho anual diferenciada, com metas alinhadas aos acordos de resultados institucionais previstos na PEC, sendo o alcance satisfatório dessas metas condição obrigatória para o recebimento do bônus de resultado, que pode chegar a até quatro remunerações anuais (em contraste com duas remunerações para demais servidores). Entretanto, além da recomendação já destacada de retirar a classificação dos cargos em categorias, a República.org entende que não é necessário diferenciar a avaliação de desempenho para cargos estratégicos, pois todos os servidores devem ser avaliados com base em entregas e competências, sendo as entregas vinculadas às metas institucionais. O que pode ser definido como diretriz é que a participação do percentual de atingimento das metas institucionais na nota final da avaliação de desempenho individual seja maior para ocupantes de cargos de liderança. No entanto, tal regra poderia constar na política de gestão do desempenho, e não em normas gerais sobre cargos comissionados. Além disso, permanecem os mesmos pontos de atenção quanto ao pagamento de bônus por desempenho, já destacados na nota técnica específica sobre gestão do desempenho. 

Princípio 2: Simplificação, racionalização e otimização da gestão do Estado.

Pontos de atenção:

No que se refere às propostas voltadas a promover maior racionalidade na gestão do Estado — em sintonia com o segundo problema identificado sobre cargos comissionados —, reitera-se o ponto de atenção já mencionado no princípio anterior, relativo à limitação global de 5% de cargos comissionados por ente. Sugere-se substituir esse limite por um percentual máximo definido a partir das características de cada unidade individualmente, e não em relação ao total de vínculos do ente. Para tanto, seria necessário dispor de dados padronizados nos portais de transparência de todos os entes, de modo a permitir o estabelecimento de um percentual devidamente fundamentado.

Princípio 3: Redução de desigualdades dentro do funcionalismo público.

Pontos de concordância:

A proposta prevê que a PEC estabeleça lei para definir percentuais mínimos de ocupação por grupos historicamente sub-representados — incluindo pessoas com deficiência, mulheres, pretos, pardos, indígenas e quilombolas — em cargos de confiança e em conselhos de estatais. Já o Marco Legal da Administração Pública estabelece que a nomeação para cargos em comissão deve observar a devida representatividade desses grupos, em proporção compatível com o quantitativo de pessoal existente no poder ou órgão autônomo, garantindo que minorias sejam adequadamente representadas. Além disso, há um outro artigo que prevê que cada poder e órgão autônomo assegurará, na nomeação de cargos em comissão e designação de funções de confiança, no mínimo a proporção de mulheres existente em seu quadro de pessoal permanente.

A presença de diretrizes que promovam maior diversidade na ocupação de cargos comissionados é fundamental tanto para a redução de desigualdades no funcionalismo público quanto para o fortalecimento da capacidade estatal. A priorização de conexões interpessoais e confiança política como critérios principais para a escolha dos ocupantes desses cargos impacta diretamente a representatividade da burocracia, uma vez que grupos historicamente sub-representados — como mulheres, pessoas não-brancas, LGBTQIA+ e pessoas com deficiência — sofrem os efeitos da discriminação estrutural, incluindo as barreiras impostas pelo racismo, machismo e outras formas de opressão, além do baixo capital social acumulado (FERREIRA, 2022). Nesse contexto, a previsão de cotas para esses grupos na ocupação de cargos comissionados torna-se uma medida necessária e estratégica. 

Pontos de atenção:

Como proposta de aprimoramento, recomenda-se ajustar a redação do projeto de lei para determinar explicitamente que cada ente e poder deve garantir, no mínimo, um percentual da proporção de mulheres e pessoas negras presentes em seu quadro de pessoal como cota para a ocupação de cargos comissionados. Por exemplo, se determinado órgão possui 40% de mulheres e 20% de pessoas negras em seu quadro, o percentual mínimo de ocupação em cargos comissionados (seja de recrutamento amplo ou fechado para servidores efetivos) seria de 32% para mulheres e 16% para pessoas negras, considerando, neste exemplo, 80% da proporção de cada grupo. Embora o ideal fosse que a proporção de cada grupo nos cargos comissionados correspondesse integralmente à composição do quadro de pessoal, esta abordagem se mostra mais viável de implementar em todos os poderes e entes, além de reduzir possíveis resistências políticas. Ademais, conforme previsto no Panorama de Gestão de Pessoas da República.org, recomenda-se que a definição desses percentuais mínimos seja aplicada separadamente em cada nível hierárquico, para evitar situações em que a cota seja cumprida apenas em cargos de baixo escalão.

Princípio 4: Valorização do servidor e do serviço público.

Todas as propostas que visam o fortalecimento da capacidade estatal e a redução de desigualdades no funcionalismo público também contribuem para a valorização do servidor e do serviço público, mantendo-se, contudo, os mesmos pontos de atenção e oportunidades de aprimoramento previamente destacados.

Princípio 5: Transparência e responsabilidade no serviço público. 

Pontos de concordância:

A proposta prevê que a lista dos cargos em comissão e funções de confiança, com indicação de ocupantes, remuneração, critérios de seleção e currículos resumidos, será publicada e atualizada permanentemente no portal da transparência. Além disso, todos os editais, resultados e justificativas deverão ser publicados no portal da transparência do ente federativo, assegurando impessoalidade, publicidade e eficiência na escolha dos ocupantes. Tal proposta é fundamental para romper com o cenário atual de ausência de transparência ativa sobre a ocupação de cargos comissionados. 

Pontos de atenção:

Para aprimorar a proposta, recomenda-se a inclusão de diretrizes para padronização dos dados, caso se mantenha a divulgação no portal de transparência de cada ente e poder. Alternativamente,  sugere-se a criação de um sistema eletrônico nacional, conforme proposto em nota técnica específica sobre medidas voltadas ao combate dos supersalários, garantindo uma transparência ativa mais consistente e eficaz.

Viabilidade técnica

Os principais desafios das propostas apresentadas são de natureza política, especialmente no que se refere à obrigatoriedade de realização de processos de seleção ou pré-seleção para os cargos comissionados. Do ponto de vista técnico, a maior dificuldade reside na construção de capacidade para implementar esses processos de forma adequada e em tempo hábil — uma das principais queixas dos gestores, que apontam também a redução do espaço de discricionariedade política na escolha dos nomeados.

Nesse aspecto, os estados partem de uma posição mais favorável. O Programa Transforma Minas, finalista do Prêmio Espírito Público 2025, já concluiu mais de 500 processos seletivos desde 2019, com apoio de organizações do terceiro setor. A experiência e a capacidade de execução acumuladas nesse estado poderiam ser adaptadas e replicadas por outros entes federativos.

A construção dessa capacidade nos demais entes, contudo, exigirá tempo — motivo pelo qual é positiva a previsão de um prazo de quatro anos para adequação às novas regras —, além de apoio técnico e institucional. Persistem, assim, os desafios de implementação já destacados em notas técnicas anteriores. Ainda que a reforma prometa gerar economia no longo prazo, sua execução demandará investimentos significativos em capacitação, consultorias, sistemas e comunicação — custos que municípios com menor espaço fiscal podem ter dificuldade em absorver. Uma alternativa seria a formação de consórcios entre municípios de menor porte para viabilizar a implementação das mudanças ou, ainda, a criação de um fundo nacional de melhoria da gestão pública, com incentivos financeiros vinculados à elevação de indicadores de capacidade estatal — hipóteses que merecem ser mais bem exploradas. Independentemente do formato adotado, é inegável que estados e municípios precisarão de apoio para implementar as medidas propostas pela reforma. A simples previsão de obrigatoriedades em lei ou na Constituição não garante, por si só, sua efetiva aplicação.

Referências bibliográficas

CORRÊA, I. et al. Distorções de incentivo ao desempenho e redução de motivação no serviço público federal no Brasil. Revista do Serviço Público, v. 71, n. 3, p. 476-503, 2020.

FERREIRA, M. Não tem Concurso? Não Tem Como Aplicar A Lei: A Reforma Administrativa E As Ações Afirmativas Nos Concursos Públicos. 2022. Disponível em: https://republica.org/emnotas/conteudo/a-reforma-administrativa-e-as-acoes-afirmativas-nos-concursos-publicos/. Acesso em: 18 out. 2025.

LOPEZ, F.; SILVA, T. O carrossel burocrático nos cargos de confiança: análise de sobrevivência dos cargos de direção e assessoramento superior do Executivo federal brasileiro (1999-2017). Texto para discussão, n. 2597, Brasília: Ipea, 2020. Disponível em: https://static.poder360.com.br/2024/01/estudo-ipea-comissionados.pdf. Acesso em: 18 out. 2025.

1 Estudo do Ipea revela que a mediana de permanência de cargos comissionados é de aproximadamente 25 meses, cerca de 30% dos nomeados deixam o cargo antes de completar um ano e menos de 30% permanecem durante um mandato presidencial completo (LOPES e SILVA, 2020).

2 Processos de pré-seleção consistem em fornecer ao agente político uma lista de candidatos tecnicamente qualificados e com diversidade de cor, raça e gênero.

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